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Ela

(...) Tereza era tão metódica pra lavar louça que mais parecia um ritual. Deve ser porque gostava. Nunca havia um copo sujo na pia. E assim que terminava o almoço lavava tudo antes de dormir seus 20 minutos diários antes de ir trabalhar. A casa de Tereza não era necessariamente limpa e organizada. Eu já vi roupas sujas penduradas no sofá. Aos domingos nunca fazia a cama.Tinha um gato velho, muito velho, que deixava umas bolinhas de pelo nos cantos. Acontece que ela nunca lavou as cortinas. Mas vivia falando que ia fazer. Com o tempo eu achava até graça. Mas a cozinha era um santuário. A pia um altar. Nunca me explicou essa obsessão. Tereza tirava os sapatos e deixava na porta todo dia. O gato dormia em cima. Abria a janela da sala e fumava um cigarro. Vez ou outra fazia um café. Do meu ponto de vista eram todos rituais sagrados. Eu era uma observadora religiosa de cada um deles. E o tempo me deixou a lembrança nítida de tudo. Eu não lavo a louça assim. Pensei que depois de tudo

Conto I

Cheguei atrasada em casa, corri tomar um banho. Debaixo do chuveiro escutei o celular tocando duas vezes. Corri vestir uma roupa, estava terminando de passar um batom, peguei o celular e tinha uma única mensagem. Dele. Dizia: a Tereza morreu. Isso faz dois anos. Depois daquela semana nunca mais nos falamos. Era ela o nosso elo. Indesejado, vale lembrar. Mas valia a pena. Tereza foi a parte mais doce da minha vida. Até hoje.

das feridas que deixamos abertas.

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Rua 3, 284

Hipoteticamente era para chover pelo menos uma chuva por mês. Hoje, marca o quadragésimo oitavo dia sem chuva. Estava sentado na cama, abaixado, amarrando o cadarço do tênis e tentando evitar que o sangue escorrendo do nariz o sujasse. Uma gota foi inevitável. Deveria ser umas quatro da tarde. Perdeu o relógio outra vez. Fechou a casa sem cerimônia, sentou na calçada suja e esperou. A rua quase deserta estava movimentada aquele dia. Carros da polícia seguiam em direção a uma grande construção abandonada no final do bairro. Não demoraria. Ou demoraria, sempre chegava atrasada, esbaforida dizendo que estava resolvendo um monte de coisas. Um vento varreu as folhas na rua e fez subir uma nuvem imensa de poeira.  Lembrou que escutara no telejornal que estava pra chegar uma frente fria. Mas sem chuva. Ela chegou quase uma hora depois do combinado e como sempre esbaforida. Não escutou nada do que ela falava no curto trajeto entre um bairro e outro, cruzando uma avenida. Subi
terça-feira a tarde,  meu colchão sem cama, mais um botão na roseira e a vastidão de sempre em dois metros e meio de janela.
eu tenho uma janela cheia de flores, acordo todo dia antes do sol esquentar, dou água a essas flores e me pergunto até quando elas sobreviverão sob a minha responsabilidade. pergunto isso sobre o quarto arrumado, sobre as contas pagas, sobre o namorado feliz e satisfeito. pergunto sobre os amigos que vem e vão, os que se cansam e os que insistem. pergunto isso sobre minhas unhas pintadas, sobre as páginas em branco de um caderno qualquer, meu carro limpo e minha geladeira cheia de comida. pergunto isso sobre as ligações metódicas do meu pai e minha vó morrendo num leito de hospital. pergunto isso sobre o céu de brigadeiro e o caminhão de lixo que passa religiosamente todas as terças, todas as quintas e todos os sábados. pergunto até quando a vida sobreviverá sob minha responsabilidade. eu penso no alivio todo que eu pensei que sentiria. penso no dia que seria mais fácil, menos pesado e inteiro finalmente. mas o que tenho nas mãos são as dores que eu mesma provoquei, no peito o medo qu
(...) e eu esqueci que o verão acabou.