Rua 3, 284
Hipoteticamente era para chover pelo menos uma chuva por
mês. Hoje, marca o quadragésimo oitavo dia sem chuva.
Estava sentado na cama, abaixado, amarrando o cadarço do
tênis e tentando evitar que o sangue escorrendo do nariz o sujasse. Uma gota
foi inevitável.
Deveria ser umas quatro da tarde. Perdeu o relógio outra
vez. Fechou a casa sem cerimônia, sentou na calçada suja e esperou.
A rua quase deserta estava movimentada aquele dia. Carros da
polícia seguiam em direção a uma grande construção abandonada no final do
bairro.
Não demoraria. Ou demoraria, sempre chegava atrasada,
esbaforida dizendo que estava resolvendo um monte de coisas.
Um vento varreu as folhas na rua e fez subir uma nuvem
imensa de poeira. Lembrou que escutara
no telejornal que estava pra chegar uma frente fria. Mas sem chuva.
Ela chegou quase uma hora depois do combinado e como sempre
esbaforida.
Não escutou nada do que ela falava no curto trajeto entre um
bairro e outro, cruzando uma avenida.
Subiram para o oitavo andar pelas escadas, o elevador estava
eternamente quebrado.
Sentaram na varanda para fumar o cigarro habitual do final
do dia. Ele observou mais atentamente os gestos dela. Exagerados, porém
sinceros.
Apagou o cigarro pela metade no parapeito, ela nem percebeu.
Ela foi até o fim, suspirou longamente, reclamou do tempo
seco e perguntou se o nariz dele continuava sangrando.
Ela entrou, tomou um banho, vestiu a camisola de todos os
dias e foi para cozinha esquentar o resto do almoço.
Ele se deixou ficar na sacada olhando os carros que entravam
no condomínio e entrou logo depois dela abrir a primeira cerveja.
Foram quase doze naquela noite.
Ela disse que poderiam dormir até tarde, não tinha nada o
que fazer no outro dia.
Ventou insistentemente e o barulho que o vento fez ao bater
na veneziana não o deixou dormir a noite toda.
Levantou logo cedo e vestiu a roupa metodicamente. E ao
amarrar o tênis percebeu que não tinha apenas uma mancha de gota de sangue.
Manchas com cores diferentes.
Abriu a porta, desceu as escadas antes de o dia estar
totalmente claro e sentiu, logo que chegou à rua, a frente fria que o
telejornal prometera.
Tomou um taxi para rodoviária. Verificou se a passagem ainda
estava no bolso. E perguntou para o motorista que horas eram.
Seis e quarenta e cinco o ônibus encostou-se à plataforma
sete. Entrou nele quinze minutos depois.
Ia para sabe lá onde.
...
No apartamento setecentos e dois do oitavo andar do prédio
Santa Clara, uma mulher com quase trinta anos, esbaforida e com gesto exagerados,
foi acordada pela dor de cabeça de uma levíssima ressaca.
Estranhou logo de cara a solidão e o silêncio.
Ligou a TV e ouviu o nome do outro.
(...) C. M. S. morto brutalmente numa construção abandonada da rua
três, do bairro a. n.
...
Na hora do almoço, desceu do ônibus para nunca mais entrar.
O nariz sangrou a tarde inteira em que esteve sentado na
rodoviária.
A cidade era menor, mais barulhenta por conta do tráfego
intenso de caminhões e menos quente.
Caminhou a tarde até a única praça, sentou-se no banco
quebrado em frente à igreja e olhou para o céu.
Alheio ao resto, escutou o comovente trovejar.
E por deus, enfim, choveu.
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